terça-feira, 14 de maio de 2019

Repasse a organizações sociais não integra limite de gastos com pessoal da LRF


Se bem utilizado, o contrato de gestão celebrado com organizações sociais pode e deve trazer benefícios.


Repasse a organizações sociais não integra limite de gastos com pessoal da LRF – A recente Portaria 233/2019, da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), estabeleceu prazo para inclusão dos valores contratados com entidades do terceiro setor no cálculo do limite de gastos com pessoal de cada ente federativo. Não obstante, a inovação é inconstitucional, ilegal e contrária ao entendimento fixado sobre o tema pelo STF e pelo TCU.
Como se sabe, o artigo 169 da Constituição Federal atribui à lei complementar competência para estabelecer os limites de despesa com pessoal ativo e inativo de cada um dos entes federativos. Trata-se da Lei Complementar 101/2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que traz os limites de despesa total com pessoal que cada ente federativo deve respeitar.
A LRF explicita o que deve ser entendido como “despesa total com pessoal”. Para tanto, o caput do artigo 18 define o que se deve entender por “pessoal” (ativos, inativos e pensionistas), enquanto seu parágrafo 1º estabelece que “os valores dos contratos de terceirização de mão-de-obra que se referem à substituição de servidores e empregados públicos serão contabilizados como ‘Outras Despesas de Pessoal'”.
A literalidade da lei em questão é sintomática. Como se sabe, ainda que insuficiente para a formulação da norma jurídica, a delimitação semântica serve como limite intransponível ao alcance da norma jurídica. Assim, não é possível extravasar o conteúdo linguístico da lei para alcançar fatos por ela não previstos, muito menos para limitar direitos ou interesses.
Desse simples raciocínio, decorre a inconstitucionalidade (por afronta ao artigo 169 da CF/88) e ilegalidade (por afronta ao artigo 18 da LRF) perpetradas pela Portaria STN 233/19. Tanto isso é verdade que o tema tem sido tratado de modo uniforme pelas sucessivas leis de diretrizes orçamentárias da União.
A título de exemplo, o artigo 105 da Lei 13.707/18 (Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO), para 2019, prevê expressamente que “para apuração da despesa com pessoal prevista no art. 18 da Lei de Responsabilidade Fiscal, deverão ser incluídas (…) as despesas com serviços de terceiros quando caracterizarem substituição de servidores e empregados públicos”.
De modo inovador, contudo, a Portaria STN 233/2019, ao tratar da contratação de organizações da sociedade civil, não exige que a parceria celebrada configure terceirização de mão de obra, com substituição de servidor ou empregado público, vinculado apenas o exercício pela entidade parceira de “atividade-fim do ente público”. Eis o teor do documento:
Além da terceirização, que corresponde à transferência de um determinado serviço à outra empresa, existem também as despesas com pessoal decorrentes da contratação, de forma indireta, de serviços públicos relacionados à atividade fim do ente público, ou seja, por meio da contratação de cooperativas, de consórcios públicos, de organizações da sociedade civil, do serviço de empresas individuais ou de outras formas assemelhadas.
(…)
Da mesma forma, a parcela do pagamento referente à remuneração do pessoal que exerce a atividade fim do ente público, efetuado em decorrência da contratação de forma indireta, deverá ser incluída no total apurado para verificação dos limites de gastos com pessoal. (g. n.)
Como se percebe, o ato normativo em questão inclui no cálculo do limite da LRF os gastos com contratação de organizações da sociedade civil — OSCs e “outras formas assemelhadas”. Acontece que nenhum dos modelos de ajuste com entidades do terceiro setor disciplinados em lei implica terceirização de mão de obra e substituição de servidores ou empregados públicos.
No que tange ao tema específico desta análise, deve-se ressaltar que os contratos de gestão constituem negócio jurídico voltado à soma de forças para a prestação de um serviço público ou de relevância pública em parceria com entidades privadas qualificadas como organizações sociais. Nas palavras do Supremo Tribunal Federal, prolatadas pelo ministro Luiz Fux na ADI 1.923, o contrato de gestão instrumentaliza a “conjugação de esforços com plena harmonia entre as posições subjetivas, que buscam um negócio verdadeiramente associativo, e não comutativo, para o atingimento de um objetivo comum aos interessados: a realização de serviços de saúde, educação, cultura (…)”.
A propósito do tema, a utilização de organizações sociais para mera interposição de mão de obra implica desvio de finalidade, a gerar uma série de consequências — inclusive o cômputo da respectiva despesa como gasto de pessoal. Afinal, a deturpação do contrato de gestão, com vistas à dissimulação da terceirização de mão de obra, não afasta a aplicação do artigo 18, parágrafo 1º da LRF.
Esse é o ponto: é necessário separar o modelo de gestão por organizações sociais de sua deturpação. E isso já é feito pela LRF.
É por todos sabido que um dos principais objetivos da LRF consiste em frear o crescimento desmesurado do quantitativo de servidores e empregados com vínculo profissional, direto e permanente com a administração pública. A equiparação da “terceirização de mão de obra em substituição a servidores e empregados públicos”, prevista na lei, funda-se, assim, na ilegalidade de tal procedimento e no alto risco de responsabilização trabalhista e previdenciária do poder público.
Nesse quadrante, convém rememorar que o STF, na ADI acima mencionada, tratou do vínculo do pessoal das organizações sociais. Nas palavras do ministro Luiz Fux, “os empregados das Organizações Sociais não são servidores públicos, mas sim empregados privados, por isso que sua remuneração não deve ter base em lei (CF, art. 37, X), mas nos contratos de trabalho firmados consensualmente. Por identidade de razões, também não se aplica às Organizações Sociais a exigência de concurso público (CF, art. 37, II), mas a seleção de pessoal” (…).
Portanto, não apenas não há terceirização de mão de obra nos contratos de gestão, como não há vínculo dos empregados das organizações sociais com o poder público. Nesse mesmo sentido, o Plenário do Tribunal de Contas da União (TCU), no Acórdão 2.444/2016, já consignou, em resposta a uma consulta do Congresso Nacional, que:
Embora, na prática, o TCU tenha observado, em várias situações, a contratação de organizações sociais apenas para servirem de intermediárias de mão de obra, tal fato não é motivo legítimo para que o instrumento seja tratado como se terceirização o fosse. Se bem utilizado, o contrato de gestão celebrado com organizações sociais pode e deve trazer benefícios.
De modo bastante enfático, o portal do TCU noticiou que “contratação de terceiro setor não está nos limites de gastos com pessoal”. E no corpo da reportagem veiculou o pensamento do ministro Bruno Dantas, para quem “traçar uma analogia entre terceirização de mão de obra e contratação de organização social, com o intuito de ampliar o alcance do artigo da LRF, ou da LDO 2016, não me parece ser a melhor hermenêutica, pois os dois institutos possuem natureza completamente distintas”.
Nessa cenário, não restam dúvidas de que, à luz da Constituição e da lei, conforme entendimento exarado pelo STF e pelo TCU, o repasse de recursos por força de contratos de gestão não é alcançado pela hipótese prevista na LRF para cálculo do limite de despesas com pessoal.
Mas não é tudo.
Outro ponto do ato normativo ora tratado a merece reflexão. Trata-se do tratamento especial dado pelo Manual de Demonstrativos Fiscais (MDF) — referido pela Portaria STN 233/2019 — aos serviços de saneamento. Segundo tal documento, caso a prestação dos serviços de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos (atividade-fim do poder público) seja realizada indiretamente, mas mediante regular processo de concessão ou permissão de serviço público, os valores repassados não devem ser incluídos no cálculo do limite de gastos com pessoal da LRF[3]. O raciocínio é correto e serve igualmente para afastar contratos de gestão com organizações sociais (celebrados nos termos da lei) do cálculo do limite da LRF. Afinal, não se pode ignorar que os contratos de gestão com organizações sociais também possuem regramento específico, chancelado pelo STF e pelo TCU.
Ainda: imagine-se um hospital público gerenciado por uma organização social e um hospital gerenciado por uma empresa privada através de contrato de concessão administrativa (PPP). Ambas as técnicas de gestão são constitucionalmente válidas para a prestação de uma atividade-fim do Estado, mas apenas a primeira hipótese, segundo a Portaria STN 233/2019, implicará impacto nas despesas com pessoal do respectivo ente público. Não há justificativa lógica para dois modelos de gestão do mesmo serviço público social, ambos juridicamente válidos, terem consequências (na dicção da portaria em referência) odiosamente distintas.
Para terminar, outra comparação.
O município que faz repasses para fomento a um grande hospital filantrópico, que há séculos vem prestando serviços de assistência à saúde da população, deve incluir os repasses no cálculo de seu limite previsto pela LRF? Se o valor extrapolar o limite prudencial, deve rescindir o convênio que instrumentaliza o repasse e deixar de garantir a sobrevivência do nosocômio? E a população atendida como fica?
Tais questões, relacionadas ao funcionamento de instituições estabelecidas no atendimento à população necessitada também se encontram violadas pelo ato normativo ora analisado. Nesse ponto, parece evidente o desrespeito, pela Portaria STN 233/2019, aos artigos 20, 21 e 22 da Lei 13.655/2018.
À guisa de conclusão, pode-se sustentar que modelo de gestão da saúde por meio de parcerias com a iniciativa privada pode trazer, como ocorre em diversos lugares do globo, ganhos em transparência, eficiência e ampliação dos serviços. Em solo pátrio, desvios e deturpações são frequentes, mas devem ser evitados e combatidos, com respeito ao arcabouço normativo já consolidado no plano legislativo e jurisdicional.
Nesse contexto, eventual interpretação da Portaria STN 233/2019 que inclua todo e qualquer repasse a organizações sociais como gasto com pessoal é inconstitucional, ilegal e inconveniente. Tal exegese apenas pode ser admitida nas hipóteses em que tais ajustes configurem desvirtuamento do modelo, caracterizando terceirização de mão de obra e substituição indevida de servidores ou empregados públicos. Repasse a organizações sociais não integra limite de gastos com pessoal da LRF
Para que isso não ocorra, cada ente federativo que possui um programa de organizações sociais deve realizar (novos) estudos técnicos e promover todos os ajustes institucionais necessários para que a modelagem, implantação e controle das parcerias não violem a lei e, com isso, impliquem a inclusão dos repasses no cálculo de gastos com pessoal da LRF.
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