Agência Fiocruz de Notícias (AFN):
O que é assédio moral? Margarida Barreto: O assédio moral pode ser definido como a exposição de trabalhadores a situações vexatórias, constrangedoras e humilhantes durante o exercício de sua função, de forma repetitiva e prolongada ao longo da jornada de trabalho. É uma atitude desumana, violenta e sem ética nas relações de trabalho, que afeta a dignidade e a identidade e viola os direitos fundamentais dos indivíduos. No Brasil, o termo assédio moral veio na esteira do assédio sexual, até porque o verbo assediar tem, segundo o dicionário Aurélio, o significado bem específico de "colocar o outro num cerco, não dar trégua e humilhar até quebrar a sua força, quebrar sua vontade". Outras denominações também usadas são assédio psicológico, tortura psicológica e, em alguns casos, violência moral. AFN: O assédio moral pode ser considerado uma doença do trabalho? Margarida: O assédio moral não é uma doença, mas um risco não visível no ambiente de trabalho. Quando se identifica o assédio moral como doença, a tendência é culpabilizar o trabalhador e colocar a discussão no marco da biologia. Isso leva a um reducionismo muito grande, pois isola o problema e retira da análise o contexto social, as formações socioeconômicas e o processo histórico. Deixa de se considerar a existência das pessoas em sociedade e o indivíduo em sua relação com o outro, num cenário específico, que é o mundo do trabalho com a lógica do lucro. É muito importante que as pessoas entendam, e essa é a nossa batalha. Já levamos essa discussão para profissionais da saúde, universidades e sindicatos. De cinco anos para cá, no entanto, nosso foco tem sido a área do direito (juízes, advogados, promotores, OAB etc), pois percebemos que havia uma certa incompreensão no sentido do julgamento, e o problema acabava sendo atribuído à personalidade e à sensibilidade do assediado, ficando descartada a questão do ambiente de trabalho. AFN: O que leva ao assédio moral? Margarida: Para se entender a questão do assédio moral, é importante, antes de tudo, compreender as mudanças radicais que o mundo do trabalho sofreu nesses últimos 20 anos. Entre outras coisas, podemos falar da questão da reestruturação intensiva das empresas, que se caracteriza, principalmente, pela demissão em grande escala. O resultado é que aqueles que ficam acabam sobrecarregados, realizando tarefas que corresponderiam a dois ou três funcionários. Outro conceito muito usado é o da flexibilização, que, na verdade, acaba sendo a flexibilização dos direitos, do tempo e da saúde do trabalhador. O trabalhador, cuja jornada de trabalho era de oito horas, passa a estar 24 horas por dia à disposição da empresa. Seu tempo passa a ser o tempo do poder e da produção. Há, ainda, a questão da empregabilidade, na qual o trabalhador é responsabilizado pela sua própria atualização, a fim de se tornar empregável, isto é, um indivíduo pronto para atender ao chamado do mercado de trabalho. O trabalhador deixa de ser um trabalhador para virar um colaborador, ou seja, nós nos tornamos colaboradores da nossa própria exploração. Tudo isso afeta diretamente a forma como as pessoas se relacionam no ambiente de trabalho e acaba formando um terreno propício ao assédio moral. AFN: Qual o papel das empresas e organizações nos casos de assédio que ocorrem com seus funcionários? Margarida: O assédio moral é um processo que se caracteriza pelo encadeamento de propósitos e atuações hostis que, quando tomados separadamente, podem parecer insignificantes, mas cujas repetições constantes têm efeitos bastante nocivos. Ele desestabiliza emocionalmente a vítima do assédio, destrói o coletivo e a rede de comunicação no ambiente de trabalho. O assédio moral é um indicador da existência de violência instituída e institucionalizada e da imposição da lógica organizacional. Quando escutamos as vítimas de assédio, fica muito claro que há dois fatores fundamentais de causalidade dessa prática: a forma de organizar o trabalho e a cultura organizacional que banaliza a violência em nome da produtividade. No Brasil, ainda é normal uma postura de fuga das empresas. Elas raramente assumem que possa haver um caso de assédio moral no seu âmbito, e isso acaba fortalecendo a idéia, que a Justiça cada vez mais manifesta, de responsabilidade solidária da empresa nos casos de assédio moral. AFN: Quais as principais características do assédio moral? Margarida: Em quase todo caso de assédio moral, é possível identificar cinco momentos muito distintos, como se fosse uma raiz que se repete em todos os lugares. O primeiro passo do assediador é impedir a vítima de se exprimir. Então, nada do que ela diz tem valor ou deve ser ouvido. Daí, começa a fase do isolamento, que ela tenta superar aumentando seu ritmo de trabalho e sua produção. Como isso não resolve, ela entra num caminho de auto-isolamento. Na continuidade do processo, o objetivo passa a ser desconsiderá-la junto aos colegas, desmerecendo seu trabalho, e desacreditá-la no seu ambiente de trabalho até, finalmente, comprometer a sua saúde. O interessante é que, para isso, utilizam-se estratégias muito sutis e até muito sedutoras. AFN: Que táticas são utilizadas pelo assediador? Margarida: Aponto as táticas de relacionamento, de isolamento, de ataque e as ações punitivas de cunho pedagógico e disciplinar. Na questão do relacionamento, visando quebrar as relações existentes, há um incentivo à competitividade e à excelência, o que acaba fortalecendo o individualismo. No isolamento, a impressão que se tem é que o assediado tem uma doença contagiosa, ninguém quer ser visto com ele. As pessoas são 'colocadas na geladeira,' isto é, num lugar onde não valem nada; são 'queimadas', por meio de fofoca; ou, simplesmente, são esquecidas, uma tática muito usada com os que retornam de licença médica. Os ataques, por sua vez, são sempre velados, nada é muito explícito. O assediador fala mal com terceiros sobre o trabalho da vítima ou sobre os riscos que ela corre de perder o emprego, deixando que ela ouça a conversa, por exemplo. AFN: E quanto às ações punitivas? Margarida: Elas são mais comuns no Norte e no Nordeste do país, mas também ocorrem em outras regiões. Essas práticas de abuso de poder têm, claramente, o objetivo de sujeitar corpos e mentes não só do assediado, mas também dos demais. Quando presenciam as humilhações impostas ao assediado, as pessoas tendem a trabalhar mais e a se calar por medo de serem os próximos a sofrer abusos, perder o emprego ou ser identificado com a pessoa que está mal no ambiente de trabalho. As ações punitivas são as mais variadas possíveis: gritos, gestos grosseiros e obscenos, comportamento hostil, intolerância, perseguição sistemática e até violência física. O intuito é desestabilizar emocionalmente a vítima, destratá-la, ridicularizá-la publicamente. As ameaças de desemprego, por sua vez, levam muitos a tolerarem o assédio, as acusações e a atribuição de apelidos depreciativos ou constrangedores, prática muitas vezes justificada pela imagem que o brasileiro tem de ser brincalhão. A insinuação de roubo é a facada final que se pode dar num assediado. Uma acusação injustificada é capaz de desestruturar qualquer pessoa. AFN: Qual o perfil de assediadores e assediados? Margarida: As pesquisam mostram que cerca de 90% dos assediadores são superiores hierarquicamente aos assediados, mas há casos em que o assédio é praticado pelo conjunto dos colegas e mesmo por um subordinado. Quanto ao sexo, há homens e mulheres, dependendo mais do cargo que ocupam. Em mais de 10% dos casos com mulheres, o processo parte de um caso de assédio sexual. No caso dos homens, o assédio sexual se torna bastante delicado quando o assediador também é homem, pois isso quebra a reação da vítima. Quanto aos assediados, eles são justamente aqueles que, de alguma forma, quebram a harmonia, porque questionam, sugerem e apontam problemas. São, geralmente, pessoas que buscam soluções para o coletivo e que se preocupam com os demais, ou seja, são os questionadores e, pasmem, os solidários. Como eles reclamam, acabam sendo vistos como aqueles que vivem fazendo drama ou criando caso, mas isso não é verdade. Outro grupo importante é o dos portadores de doenças causadas pelo próprio trabalho. De forma geral, os mais velhos e as mulheres, principalmente as negras. AFN: Quais os custos e conseqüências do assédio moral? Margarida: Para o trabalhador, o assédio representa um grande sofrimento, que começa com o medo, a ansiedade, a vergonha e o sentimento de culpa, entre outros. Como o sofrimento é a ante-sala do adoecimento, as coisas vão piorando, o estresse aumenta e isso pode levar inclusive a vícios diversos e ao suicídio. Quando começa o processo de sofrimento, o trabalhador fica imerso numa zona cinzenta em que ele não entende o que está havendo. É como se ele entrasse num túnel de emoções tristes, que acabam criando uma rede imaginativa que leva à repetitividade do pensamento. Ele só consegue pensar nisso. O sofrimento poda a sua criatividade e pode até afetar sua memória. E isso não ocorre por fragilidade da pessoa, mas é uma conseqüência natural do que ela está passando. As reações são variadas. Uns podem engordar e outros emagrecer em demasia e sem motivo aparente. Pode haver diminuição da libido, isolamento social e reprodução da violência sofrida no ambiente doméstico. No caso dos homens, quando eles chegam a desistir ou perder o emprego há ainda um agravante. Como, culturalmente, o homem é tido como provedor da casa e, por um certo machismo, não deve demonstrar fraqueza, o assédio pode deixá-lo completamente desestruturado, levando ao suicídio. AFN: A empresa também tem prejuízos? Margarida: A empresa, por sua vez, sofre os efeitos da diminuição da competitividade, da redução da produtividade, da perda de lucratividade, da perda de trabalhadores qualificados, do aumento de doenças e acidentes, do aumento do absenteísmo, das perdas econômicas, por pagamento de indenizações e processos, e dos danos à imagem, entre outros. Por fim, perde o Estado, que, além de perder o potencial de trabalhadores produtivos, ainda vê aumentarem os gastos da previdência. AFN: O que fazer para evitar o assédio moral? Margarida: Em primeiro lugar, é importante ter em mente que o assédio moral não começa como assédio. Ele sempre começa com uma situação de conflito não resolvido. Portanto, acho importante diferenciar bem o conflito – algo positivo, que pode desencadear novas idéias e crescimento mútuo, que envolve tarefas claras, objetivos coletivos e comunicação sincera, honesta e respeitosa – do assédio moral – no qual imperam as tarefas confusas, as ordens ambíguas, o boicote e o individualismo, a falta de ética e a comunicação indireta, evasiva, difícil, autoritária e desrespeitosa. O momento ideal de intervenção é durante o conflito, ou seja, antes que ele evolua para um caso de assédio moral. Por que está se prolongando? O que está interferindo? Se o conflito começa a virar um caso de assédio, é necessário fazer uma prevenção primária, que envolve, entre outras coisas, uma tomada de posição da empresa, informando que não vai tolerar a prática do assédio moral, a realização de campanhas de sensibilização antiviolência, a elaboração e a distribuição de cartilhas ou outro material informativo, além do estímulo às atitudes respeitosas nas relações interpessoais, o que é bastante complicado, porque mexe com a política de gestão da empresa. Caso isso ainda não resolva, deve ser feita a chamada prevenção secundária, com criação de grupos de apoio e sensibilização, reconhecimento do problema, escolha de um mediador para negociar soluções e permitir o entendimento, planificação e reorganização do trabalho, visando prevenir e abolir o risco de perseguição psicológica. Quando nada disso resolve, o jeito é administrar as conseqüências e, entre as providências possíveis, pesquisar as causas do assédio moral e sua relação com a organização do trabalho; verificar as falhas da organização de trabalho que impedem a ajuda mútua e a colaboração entre os trabalhadores; rever normas, códigos de conduta e processos avaliativos. AFN: Como é a questão do assédio moral nas empresas públicas? Margarida: Não existe um local onde não exista assédio moral. Ele ocorre em empresas privadas, empresas públicas, organizações não-governamentais, instituições filantrópicas, sindicatos, igrejas e em todo lugar onde há trabalhadores. O assédio nas empresas públicas está muito ligado às políticas de ascensão funcional e ao modelo de gestão. De certa forma, o que venho observando é que o processo nas empresas públicas tende a ser mais perverso e penoso do que nas empresas privadas, pois a pessoa suporta o assédio sempre com a esperança de que, quando mudar o comando, as coisas mudem. Por outro lado, como a pessoa não pode ser mandada embora, ela, muita vezes, é colocada à disposição e começa a rodar por vários setores, sempre carregando um estigma que, freqüentemente, faz com que ela volte a ser assediada. Já vimos casos de assédio em empresa pública com duração de oito anos, enquanto na empresa privada o máximo foi de um ano e meio. Fonte: Fonte: Informe Ensp
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